quarta-feira, 14 de setembro de 2016

PREFÁCIO ao livro De volta ao fim (2016)



Suponhamos que quando dizemos o “fim das vanguardas” não estejamos
nos referindo a um conteúdo de verdade histórica, algo verificável em
determinado momento da segunda metade do século XX, mas que estejamos
nomeando uma operação crítica e discursiva – presente em textos
ensaísticos, literários, jornalísticos – ela mesma produtora de história. Neste
caso, teríamos que ouvir a hoje afamada expressão “o fim das vanguardas”
sempre entre aspas, independentemente do uso do sinal gráfico, como uma
espécie de citação. A hipótese deste livro é que a análise do enunciado do
fim das vanguardas e das variantes da ideia de fim (a consumação, a crise,
o sinistro) oferece um ponto de partida particularmente esclarecedor para
a compreensão daquilo que está em jogo no “contemporâneo”, ou melhor,
na visão que nossa época vem construindo sobre si mesma, de modo não
necessariamente homogêneo, não necessariamente harmonioso.

Meu interesse, portanto, não é o de submeter a expressão “o fim das
vanguardas” a um teste de adequação à realidade. Não se trata de reiterar
a visão de história à qual ela se refere, nem tampouco contradizer seus
pontos de referência, a fim de promover a volta a uma narrativa mais original
e mais autêntica, da qual teríamos nos desviado. Pela mesma razão,
não se trata de lamentar o descalabro e a penúria que teriam se seguido ao
suposto aniquilamento do espírito crítico, ou seja, ao declínio das diversas
soluções dadas pela poesia a seu mal-estar, ao longo do século XX, como
expressão artística ou como fato social. Dessa mesma perspectiva, mas por
outro lado, não me parece haver interesse crítico em simplesmente reiterar
o estado de eventual satisfação (aliás, o mais das vezes matizado) por meio
de uma atitude politicamente mais acolhedora: a aceitação da ideia de
uma pluralidade desreprimida e pacificada. Tais lugares de fala são igualmente
parte do problema, quando reforçam a lógica da mera substituição
histórica, como se nossa relação com o passado e com o presente fosse um
processo destituído de conflitos, de recalques e de estratégias.

Não me escapa que o espírito crítico e autocrítico (frequentemente,
“contrapoético”), inquieto, contestatório, seja uma das contribuições que
a tradição de vanguarda do século XX trouxe à poesia e à própria postura
do artista diante de seu presente. Essa tradição estética e crítica ajudou a
constituir uma relação ativa com o contemporâneo que nos define ainda
hoje; e, sem que precisemos ver nela um horizonte intransponível, é possível
dizer que acabou por estabelecer um modo específico de entendimento
dessa modernidade, no qual se incluem violências e processos de
totalização de que nos ressentimos ainda hoje. Mais do que isso, convenientemente
para a crítica e para a história literária, a vanguarda foi, em
muitos momentos, produtora do seu próprio sentido histórico e crítico. Os
sucessivos manifestos e declarações de princípio, a reconstrução de genealogias,
seus diagnósticos e projetos, certa didática da intervenção estética e
política acabaram nos habituando com uma dinâmica na qual determinadas
declarações da vida literária tornam-se mais do que meros dados em
um conjunto a ser analisado: elas tendem a se transformar, graças à sua
força descritiva e prescritiva, em fatos, isto é, no sentido da vida literária
propriamente dita. Quando esse amparo lhe é subtraído, compreende-se
o relativo desalento (a sensação de que “nada está acontecendo”) característico(
a) da crítica e da história literária, em especial no Brasil, onde a
“tradição da ruptura” (na conhecida expressão de Octávio Paz) tem um
peso considerável. A poesia brasileira do século XX é um campo dentro
do qual a vanguarda ou a questão da vanguarda são mais do que simples
episódios: elas fazem parte de seu modo de existência.

Constatar o caráter não apenas incisivo desses gestos, mas também a
sua força legitimadora é, portanto, um modo de relançar a compreensão
histórica que podemos ter sobre o contemporâneo. O que está em jogo
não é exatamente um conjunto de valores e critérios que sucede àqueles da
vanguarda mas é, a meu ver, especificamente, um outro modo de relação
com esses mesmos valores e critérios. A vanguarda é (ou continua a ser)
nosso problema exatamente porque superá-la é aquilo que desejamos.

O mesmo movimento interpretativo nos permite realizar um outro
tipo de percurso, que caracteriza a segunda parte deste livro. Trata-se de
reavaliar a relação que a crítica e a história literária do século XX, não
apenas no Brasil, estabeleceram com o passado, sobretudo se levarmos
em conta que a construção do espírito crítico vanguardista baseou-se
frequentemente em uma simplificação excessiva da poesia da segunda
metade do século XIX. Na medida em que o “passado” foi identificado,
pelos primeiros movimentos de ruptura do século XX, com o “passadismo”,
a possibilidade de ler a poesia anterior como fenômeno relacionado a seu
próprio tempo, como inserção estratégica em seu presente, questionadora
do seu contemporâneo, foi praticamente aniquilada. Recontextualizar o
movimento geral que instaurou determinadas interpretações do passado e
entender o sentido dos projetos que o reeditam ainda hoje (como é o caso
da discussão francesa sobre a “pós-poesia”) são tarefas críticas e historiográficas
colocadas pelas demandas específicas de nosso tempo, as quais
deveriam abrir espaço para outras possibilidades de leitura da tradição.
Não deixa de ser significativo que a releitura historicamente mais atenta
dos autores do período anterior às vanguardas (dentre os quais Mallarmé
permanece como caso paradigmático) apenas tenha sido possível, apenas
tenha parecido necessária, recentemente, a partir do momento em que os
critérios de vanguarda passaram a ser questionados.

A essa avaliação geral é preciso associar tópicos particulares de entendimento
da poesia moderna, que ganharam notoriedade graças a determinadas
obras de teoria e história literária, tendo transformado a noção
de “esteticismo”, por exemplo, em apoio básico para diferentes projetos de
compreensão da poesia moderna. A tradição de leitura de Hugo Friedrich
me parece bastante reveladora, nesse sentido. Apesar de recusada por
diferentes autores, já há mais de meio século, a perspectiva de Friedrich
sobre alguns poetas modernos, especialmente franceses, continua sendo
uma referência decisiva para as reelaborações contemporâneas. O que a
crítica vem contestando no romanista alemão não é exatamente suas teses
sobre a tradição poética, mas as escolhas que faz, os autores que toma como
referências básicas da poesia moderna. Sintomaticamente, suas propostas
continuam sendo usadas pelos mais ferrenhos detratores, quer seja como
contraponto seguro da tentativa de resgatar o tônus de realidade ou de realismo
da poesia (o que permitiria atribuir autoridade histórica a outro tipo
de cânone moderno), quer seja como parte estratégica de uma crítica à
ambição moderna da “autonomia” poética, a fim de dar destaque a visões
não totalizantes (baseadas numa determinação em bloco do moderno
como espaço monológico, a ser superado pela injunção do hibridismo).
Parece-me claro que, do ponto de vista do discurso crítico e historiográfico,
a dependência à interpretação de Friedrich é um dos aspectos mais reveladores
do estado contemporâneo da discussão sobre poesia.

Se elaborar a maneira pela qual parecemos suceder à época das vanguardas
é uma tarefa de nosso tempo, ela requer também o cuidado de não
se promover uma oposição pura e simples às narrativas de vanguarda, a
fim de resgatar, por exemplo, o elemento mais original ou mais autêntico.
Não há narrativa mestra, da qual a vanguarda seria um desvio. A negação
da perspectiva de vanguarda, que recorre ao universo das poéticas ditas
“neoclássicas” ou antivanguardistas, não advém apenas de um espírito de
reforma baseado na denegação, na oposição e na re-hierarquização dos
diferentes matizes da modernidade; quando destituída do tratamento crítico
exigido pelas dissonâncias de seu próprio descentramento, torna-se
rapidamente uma avaliação inconsistente, em especial em relação ao modo
de reagir ao contemporâneo. Por essa razão, embora tenhamos atualmente
razões de sobra para desconfiar de termos como “novo”, “invenção”, “militância”,
“subversão”, “revolução” (que supõem totalidades e que, na condição
de palavras de ordem, costumam objetivar a produção de anacronismos),
por outro lado, me parece ainda mais problemático o gesto que não
integra nesse movimento o impacto de sua própria extemporaneidade.

Por razões semelhantes, a leitura que proponho do discurso sobre o
fim das vanguardas não se destina a criar instrumentos para desvanguardizar
a história da poesia. Não há propriamente “retorno” à modernidade,
uma vez que a ideia de modernidade, também ela, é uma construção com
valor histórico. Se a história é caracteristicamente constituída de contradições,
violências e exclusões, tenho dúvidas de que a melhor solução seja
a de operar apagamentos, perdendo a clareza sobre aquilo que teve lugar.

Como ficará claro nos ensaios deste livro, a melhor resposta que
podemos dar a essas questões é contextualizar a formulação do “fim das
vanguardas”, dando-lhe o estatuto de acontecimento estético-crítico, ou
seja, analisando seu modo particular de transformar-se em presente.
Indagar-se a respeito do contexto, nesse caso, não é nada mais do que uma
tentativa de entender os fenômenos dentro de um espaço que havia sido
apagado ou esvaziado pelo gesto de adesão; é enriquecer o sentido desses
fenômenos por meio do reconhecimento e do embate com seus limites.
Esse movimento, que não pode pressupor uma história acabada e linear,
mas aberta a reinscrições e cruzamentos discursivos, solicita não apenas a
problematização das narrativas instituídas, mas também a consciência de
que a descrição de um novo contexto, qualquer que seja, nunca é saturável:
ao delimitar um espaço de análise, estamos novamente aumentando sua
complexidade, fazendo-o transbordar, reabrindo-o a outras perspectivas,
deslocando-o necessariamente.

A questão não se resolve, portanto, com o relance da visão historicista,
disposta a corrigir seus passos pregressos, abonando ou contradizendo
suas teses fundadoras. Ela envolve antes de tudo o desafio de trabalhar com
os dilemas que essa reavaliação nos impõe, os conflitos e o inacabamento
de nossa maneira de entender a poesia. Quando se coloca em primeiro
plano movimentos de denegação, fantasmas ou reinscrições voluntariosas,
o que acaba por ganhar o primeiro plano é a própria condição de nossa
fala. Se não somos exatamente pós-vanguardistas ou pós-utópicos, não é
porque não temos singularidades e diferenças em relação à vanguarda e à
afirmação utópica, outras formas de relação com a história: não somos exatamente
pós-vanguardistas porque os impasses que reconhecemos como
constitutivos desse lugar histórico e discursivo nos expropriam do sentido
linear e totalizante de nosso presente. Ou seja, um dos problemas a resolver
é justamente a (im)possibilidade de sermos contemporâneos de nós mesmos.
Creio que reconhecer esse movimento de expropriação é uma das
tarefas relacionadas ao desafio de responder ao contemporâneo.

Apesar da visão circunscrita que essa tradição poética e crítica tem
a respeito do papel da poesia e da arte, devo dizer que não vejo interesse
em simplesmente abandonar a inquietude característica do pensamento
de vanguarda. A disposição questionadora e investigadora em relação ao
presente é, de fato, um de seus predicados mais salientes. E talvez continue
sendo o ponto com o qual nos debatamos, quer seja no momento em que
lamentamos o fim de uma época de “heroísmo” do poeta e da poesia, quer
seja no momento em que aceitamos muito rapidamente a pulverização
da ideia de poesia em situações culturais e estéticas por demais inespecíficas.
O que está aí em jogo é o estatuto da poesia (o que ainda nos ocorre
chamar por esse nome) e da poética (como tradição e disciplina de pensamento)
entendidas como lugares possíveis de relação com o presente.

Se, por um lado, é preciso desarmar o discurso da crise como instrumento
político de desmobilização ou de desmonte da tradição poética e
literária (o que creio ser o caso mais urgente no Brasil), por outro lado é
preciso também reconsiderar a noção de crise como parte de uma atitude
crítica que tem também uma dimensão propositiva, imaginativa de certo
modo, destinada ao espaço comum da interlocução. É na perspectiva dessa
dupla tarefa que acrescento aos ensaios mais longos deste livro, resultados
de pesquisa universitária (em especial, desde o projeto “Imagens do fim”,
desenvolvido com bolsa PQ/CNPq, a partir de 2011), alguns textos ditos “de
intervenção”, escritos mais breves, originalmente destinados a revistas e
jornais. Creio que, da mesma maneira que não faltam a estes últimos elementos
argumentativos, também não faltam aos primeiros a explicitação
dos problemas mais amplos e mais urgentes com os quais dialogam.

À discussão sobre o fim das vanguardas – e sobre aspectos que, em
autores bem diferentes, remetem à questão do contemporâneo pela via da
superação ou da denegação da tradição de vanguarda – este livro acrescenta
alguns textos que abordam diretamente o valor crítico da própria
ideia do “fim”, do “naufrágio”, do “sinistro”, da consumação (inclusive ecológica)
de nossa capacidade de “mundo”. Dessa perspectiva não simplesmente
mais genérica, e sim mais tensa, me parece importante suspender
momentaneamente o anúncio do fim das vanguardas – tantas vezes identificado
com o esgotamento da própria poesia – de forma a tornar mais
sensíveis as forças e as tensões que vêm modulando nossa reflexão sobre
o assunto. Arrisco-me a propor, em um dos textos, que o anúncio do fim
das vanguardas não deixa de constituir-se como um manifesto, bem ao
gosto daquilo que o século XX nos habitou a considerar como modo incisivo
de irrupção do poeta na história. Mas manifestar, em especial numa
época que recusa a legitimidade do gênero “manifesto”, não pode mais ser
entendido como ato de fixar determinados princípios, coerentes consigo
mesmos e com sua recepção; manifestar nada mais é do que explicitar o
desejo de dar sentido, ou seja, um modo de se debater com a questão do
sentido. Aventurar-se nesse impasse produtivo é um modo de responder
ao contemporâneo.

Um caso exemplar, cheio de complicações subliminares, vem da
pluma de um velho vanguardista, Haroldo de Campos, no momento em
que este procura justamente dar nome a um novo estado de coisas. Não
me parece ser a situação mais característica, mas decerto ela é bastante
reveladora a respeito do fato de que a passagem para fora das vanguardas
não é, de modo algum, uma passagem para além da crise. Pelo contrário,
é um passo na direção de um novo lugar de expropriação e de conflito,
no qual valores e critérios de vanguarda não deixam de marcar presença,
justamente pela falta que parecem fazer ou, ainda, pelo fato de serem reciclados
em vista de outros interesses, outros tipos de demanda histórica.

Continuando a reflexão que propus em Poesia e crise (Ed. Unicamp,
2010), a ideia deste livro é mostrar como o discurso sobre o fim da vanguarda
(mas também sobre o fim da poesia, o fim da arte e, eventualmente,
o fim do mundo) constitui-se como um deslocamento, isto é, como uma
metamorfose do espírito crítico associado à tradição poética moderna.
Se não há um “após” às vanguardas, à arte, ao mundo, é porque não há
“fim” propriamente dito, independentemente da linguagem na qual esse
fim é enunciado. Não há um após o fim, um após a finitude, uma “época”
de posteridade ou uma “consciência” de posteridade, a partir dos quais
poderíamos simplesmente constatar o fim, nomeá-lo, historiá-lo, ativá-lo
a nosso favor. Estamos incessantemente de volta ao fim, ou seja, às voltas
com o fim, em conflito sobre que nome dar àquilo que teria acabado, sobre
o que significa de fato chegar ao fim.

Em outras palavras, estamos o tempo todo reinventando nosso lugar,
um lugar no qual a visão da catástrofe não faz nenhum sentido, a não ser
na medida em que nos permite imaginar outros tipos de começo.


[Prefácio ao livro De volta ao fim: o "fim das vanguardas" como questão da poesia contemporânea. 
Rio de Janeiro: 7Letras, 2016]



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