quarta-feira, 4 de janeiro de 2017




ENTREVISTA COM MARCOS SISCAR POR IGOR GOMES


I.G. – Os poetas que compõem “26 poetas hoje” são (eram), em sua maioria, vinculados ao que se conhece por “poesia marginal”. Entendo que, de alguma forma, existe uma utopia nesse movimento: a busca por uma estética e “marketing” fora do âmbito das grandes editoras, das grandes influências – buscava uma identidade mais próxima da fala cotidiana e do leitor. Na sua opinião, qual a influência dessa antologia para o entendimento da “poesia marginal”?

M.S. – Historicamente, a antologia à qual você se refere é justamente aquela que ajuda a estabelecer a ideia de geração, ou de grupo. Se há um “marketing” da poesia marginal, ele vem inicialmente da disposição de uma antologista em reunir esses poetas e tratá-los como conjunto coerente. A ideia de conjunto pode ser objeto de discussão, mas o efeito histórico da antologia é inegável.

De resto, o prefácio da antologia refere-se justamente ao perigo do marketing que, à época, respondia pelo nome de “moda”. Eu diria que a atitude dessa geração é a de se afastar do marketing institucional, o que não quer dizer que não se buscasse a circulação dos trabalhos. Tratava-se de imaginar uma circulação mais orgânica, que chegasse às pessoas diretamente, que estabelecesse uma relação direta com o público, que fosse de certo modo formadora de público, sem a necessidade de obedecer aos formatos e aos espaços prescritos para a literatura da época. Há algo de ingênuo aí, mas a disposição crítica é muito apreciável, tendo em vista o “bloqueio sistemático das editoras” ao qual se refere o prefácio. A ideia de que circulação e marketing coincidem é uma triste característica da nossa época.


I.G. – Grandes poetas, como Drummond ou João Cabral, nos levam a uma “angústia de influência”, para usar um termo de H. Bloom. Se tornam problemas para seus sucessores não tanto pela estatura, mas pelas “bifurcações poéticas” que impõem a seus herdeiros, como você diz em “De volta ao fim”. A poesia expressa em “26 poetas hoje” não ocupa o mesmo lugar de Cabral ou Drummond ou Bandeira, o de clássico inquestionável. Mas ela lançou problemas às gerações seguintes?

M.S. – Sim, acho que são situações bem diferentes. Na antologia da década de 1970, há autores que se tornaram importantes e influentes, mas que ainda não ocupam lugar comparável ao de Drummond e Cabral no imaginário poético brasileiro. Aliás, é preciso lembrar que o próprio valor literário dessa geração foi objeto de discussões bastante polêmicas. Basta ver, entre outras, a diferença de avaliação que fizeram dela críticos como Heloísa Buarque de Hollanda e Iumna Simon.

Por outro lado, a circulação que poetas como Ana Cristina Cesar, Roberto Piva ou Francisco Alvim têm hoje dia não se vincula necessariamente, ou preferencialmente, à ideia de geração. São obras muito diferentes umas das outras e que perdem muito com essa circunscrição.

Voltar a falar de “poesia marginal”, hoje, talvez fizesse sentido se pudéssemos, ao historicizar a “utopia”, entender de modo mais exigente o nosso próprio tempo. Muitos daqueles poetas tinham uma relação muito crítica com o seu presente. Poderíamos, então, nos perguntar que tipo de relação os poetas têm hoje com as instituições, com as mídias, com o “marketing”? Que tipo de relação com o leitor a poesia de hoje vem buscando? A quem procura se destinar a poesia contemporânea?


I.G. – Dado o atual contexto político, me parece que 26 poetas hoje continua atual por trazer elementos políticos fortes (por exemplo, a poesia de Roberto Piva ou Chacal). Na sua opinião, qual o papel político (se é que existe, para você) de uma antologia poética? Ele muda, na sua concepção, ao longo do tempo?

M.S. – Uma antologia é “política”, especificamente, no sentido de que faz “política literária”. É um recorte, que procura dar sentido ao contemporâneo. Por isso também é uma forma de crítica.

Claro, ela pode ser “política” em outro sentido, ao reunir autores que se notabilizam pela resistência a determinados padrões culturais e mercadológicos, autores por assim dizer “marginais”. Mas a própria ideia nomeada pela palavra “marginal” pode ter sentidos muito diferentes e mesmo contrastantes em épocas diferentes, como vem acontecendo entre nós. 


I.G. – Em seu livro “De volta ao fim”, você lembra que hoje o entendimento da poesia contemporânea brasileira passa pela ideia de pluralidade. Você cita a segunda antologia (a dos anos 1990) organizada por Heloísa Buarque como um dos reforços a essa ideia – que veio a lume nos anos 1980 em ensaio de Haroldo de Campos. “26 poetas hoje” é anterior a essas ideias (é de 1976). Mas é possível encaixá-la dentro desse olhar “plural”? Se sim, como?: é uma relação presente/passado ou essa poesia continua fortemente presente?

M.S. – Há quem discorde disso, mas acho que a antologia 26 poetas hoje corresponde a outra “época” do discurso sobre poesia no Brasil. Até por isso, o que ela tem de historicamente mais relevante é a ideia de grupo, de geração. Aquilo que tenho chamado de “paradigma da pluralidade” define-se justamente como dissolução desse caráter ou desse desejo de coletividade na criação. Isso se vê claramente na pulverização da proposta de grupo, gerando não apenas a ideia do projeto criativo individual, mas a multiplicação abundante e difusa daquilo que hoje chamamos (em sentido completamente distinto) de “coletivo”, usando a palavra como substantivo e não como adjetivo. Há um constrangimento muito forte, hoje em dia, em se estabelecer posições singulares, mas de grande abrangência, que possam dizer respeito a todos, ou a qualquer um. Como se isso fosse antidemocrático, de alguma forma. A questão é complexa, mas há um equívoco aí que me parece muito lamentável.


I.G. – A celeuma acadêmica que “26 poetas hoje” causou na época de seu lançamento hoje se converteu em uma aceitação pacífica: o livro já foi, inclusive, indicado como leitura para vestibular (UFMG, 2008, por exemplo). É possível dizer que o livro é um clássico? (“clássico” não no sentido de uma obra estanque que jamais comporte novos olhares, mas sim de obra referencial que ocupa um lugar dificilmente questionado).

M.S. – Sim, é uma obra de referência. As questões que levanta e às quais se associa, entretanto, não estão fechadas. Não acho que são “pacíficas”. O passado sempre pode ser relido. O que chamamos “contemporâneo” vive, em boa medida, da discussão sobre seu passado imediato.


 I.G. – A Companhia das Letras anunciou, recentemente, a publicação de uma antologia de poesia “nos moldes de 26 poetas hoje”, que será organizada por Adriana Calcanhotto. O que acha dessa iniciativa e de colocarem a artista para organizá-la? A curta nota de O Globo deixa a entender que o critério será cronológico (poetas nascidos entre 1973 e 1990) – o que não impede que outras ideias guiem o trabalho de Calcanhotto. (A notícia de O Globo é essa: http://blogs.oglobo.globo.com/lauro-jardim/post/os-poetas-da-calcanhotto.html).

M.S. – É difícil comentar alguma coisa que ainda não existe. Mas acho que dá pra dizer que as duas antologias não têm muito a ver uma com a outra. A relação que consigo enxergar é que 26 poetas hoje se tornou conhecida depois de publicada e discutida, por ter inventado um conceito histórico; já a fama da antologia da Co. das Letras precede a própria antologia, o que evidencia que não estamos diante de um trabalho intelectual, simplesmente, mas também de um produto de mercado. Nem é necessário dizer que a comparação é excessiva, porque o paralelo entre uma antologia e outra evidentemente já faz parte de uma estratégia publicitária. 

Há muitas antologias de poesia contemporânea brasileira sendo publicadas no Brasil e no exterior, em livros, em revistas. É fácil notar como cada uma tem um recorte, uma ideia do que é a poesia, do que deveria ser a poesia, do que deveríamos olhar quando lemos poesia. Recortes podem ser apreciados, mas também precisam ser analisados. 

De todo modo, é sempre bom ver uma antologia de poesia no Brasil sendo publicada por uma grande editora. Grandes editoras costumam ser arredias à publicação de poesia. Mas parece que, depois da publicação das obras de Paulo Leminski e Ana Cristina Cesar, será preciso um pouco mais de cinismo para repetir o refrão de que “poesia não vende”.


(Entrevista feita por Igor Gomes para reportagem publicada no Suplemento Pernambuco, em janeiro de 2017. Disponível em: http://www.suplementopernambuco.com.br/artigos/1762-26-poetas-hoje-e-o-papel-das-antologias.html). 

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