domingo, 22 de março de 2020


O CTRL C CTRL V DE DIEGO PANSANI


























[Foto de Raphaela Fonseca]




VALOR DE USO

     Para Diana Junkes

Notas rasuradas
com o carimbo
Lula Livre não
perdem o seu valor,
informa o Banco Central.

Desde o começo da semana,
tem circulado na internet um vídeo
que mostra um grupo de pessoas
carimbando cédulas
do real com uma marca que leva
o rosto do presidente Lula e
a legenda “Lula Livre”.

“É de graça”, afirma a mulher que carimba as notas enquanto apoiadores fazem fila.


O livro Nenhuma poesia, de Diego Pansani, recoloca em cena o readymade, procedimento que, em literatura, remete às correntes “objetivistas” do século XX e XXI. O sentido e as consequências desse readymade (ou “CTRL C CTRL V”, como diz o poeta) é algo complexo, que precisaria ainda de elaboração crítica. Mas, de imediato, no caso de Pansani, basta dizer que se trata de uma tentativa de equacionar a relação entre linguagem e política. O que a poesia pode fazer diante do caos da informação ou (como prefeririam alguns) diante da metástase da informação? Como mobilizar esse caos a favor da poesia?

Escolho o texto “Valor de uso” (decalque de uma reportagem de 2018), porque é exemplar daquilo que o livro faz e das questões que estão por trás dos procedimentos que o poeta utiliza. Dá pra dizer que a transformação do “valor de troca” em “valor de uso” (de acordo com a terminologia marxista) é o desafio que esse tipo de poesia se coloca: retomar a energia do “valor diferencial” (como se diz em Linguística) para colocá-la a serviço de um valor de “experiência”. Não é nada simples, mas é uma situação que atravessa o livro nas várias situações de comunicação que ele mobiliza, em geral ironicamente, do jornalismo político à linguagem privada ou aos emoticons.

Se a linguagem corrente é um valor “de troca”, é dinheiro (currency), de certo modo, a poesia é concebida como carimbo sobre essa linguagem cotidiana da informação. E sua aposta é a de que esse carimbo se transforme em arma política. Mas uma arma política cuja condição contraditória é a de permanecer sendo poesia. Tarefa complexa que o livro consegue tornar inteligível com muita inventividade, com um jogo eficaz (por exemplo) na escolha dos títulos e na perturbação paródica das estruturas do livro. 

Após percorrer as mais de 150 páginas, resta entretanto uma dúvida: quando a poesia entra no jogo diferencial das linguagens, da “diversidade” de linguagens, ela ainda é capaz de propor uma situação alternativa? A radicalização do valor diferencial (ou seja, a relativização ou a abolição total das fronteiras) empreendida pela antipoesia de Pansani pressupõe uma cumplicidade com as fronteiras. Como lidar com isso? É um desafio que se coloca à poesia do readymade, da performance, do processo. Como conjugar o impacto (subversivo) da experiência com os hábitos que esse gesto pressupõe e recoloca em circulação? A poesia teria capacidade de produzir distanciamento, mergulhada no império da informação? Qual seria seu “poder de fogo”?



[Sobre Nenhuma poesia, de Diego Pansani (Rio de Janeiro: 7Letras, 2019). Texto originalmente publicado na seção “Porque hoje é sábado” da revista 451, no Facebook: https://www.facebook.com/revistaquatrocincoum/photos/a.1901817230086276/2547421502192509/?type=3&theater ]

sexta-feira, 17 de março de 2017

SOBRE A POESIA QUE VENDE





Há uma ideia já antiga, realista e ao mesmo tempo estratégica, de que “poesia não vende”. Ainda não está muito claro se isso seria uma vantagem ou uma desvantagem para a poesia. Mas o fato é que os livros de poesia costumam ser recusados por livreiros e, consequentemente, olhados com polida antipatia quando apresentados aos editores. Alega-se desinteresse do público. Segundo uma discussão curiosa, especula-se se seriam 300 ou 3.000 os leitores de literatura contemporânea, no Brasil. A estimativa é tão incerta quanto impraticável, uma vez que leitores de poesia não leem poesia apenas em livros nem compram necessariamente os livros que leem. De resto, a internet complicou de uma vez por todas esse tipo de cálculo.  

A ideia do desinteresse em relação à poesia refere-se, portanto, em primeiro plano, não exatamente à leitura, mas à venda de livros (2% do mercado de livros de ficção, em 2012). Ainda aí há complicações. Em 2013, a tese da marginalidade mercadológica tornou-se algo insólita com o best seller de Paulo Leminski, Toda poesia, publicado pela Co. das Letras, livro que chegou aos 100 mil exemplares vendidos em pouco mais de um ano. Poética, de Ana Cristina Cesar, também não fez feio e seguiu-se a ela outra compilação, de Wally Salomão, no setor de “clássicos” contemporâneos ainda não “resgatados” (como disse uma das editoras da casa). A poesia portanto é resgatável, também comercialmente.

Outros editores, inclusive pequenos, vêm mostrando um interesse já consolidado pela poesia, publicando-a “discretamente”, não raro de modo artesanal. A situação, bem diferente do aberto descaso de que sofria o gênero há algumas décadas, merece atenção do ponto de vista crítico e editorial. 

A Co. das Letras tem sua especificidade. Ao lado dos poetas ligados ao pop dos anos 1970, a editora vem publicando também sucessos modernistas já estabelecidos, como Vinícius de Moraes. A compra dos direitos de publicação de Drummond, em 2012, foi um acontecimento importante na agenda comercial do livro. O lançamento, em 2017, das Poesias reunidas de Oswald de Andrade e a previsão de lançamento da poesia completa de Hilda Hilst parecem indicar uma nova estratégia. Nota-se que a tentativa de atribuir glamour comercial à poesia, apoiada no aparato da publicidade, tem sido capaz de mobilizar setores especializados da mídia e a atenção dos festivais.

Com exceções pontuais, a Co. das Letras sempre publicou poesia esparsamente. Com relação à poesia brasileira, a consolidação do catálogo é ainda mais recente e a escolha de autores, relativamente arbitrária. Se a publicação de poesia pode ser vista como uma concessão que se faz a determinados círculos intelectuais, como um verniz de civilidade dentro da lógica de mercado, gerando “sucesso de estima”, não se pode menosprezar a tendência da incorporação ao catálogo de nomes do showbiz, de tudo aquilo que circula bem nas colunas e nas redes sociais. De Gregório Dudivier e Arnaldo Antunes a Fernanda Torres, isso é perceptível não apenas no caso da poesia. Mas a notícia de uma antologia de poesia brasileira contemporânea organizada por Adriana Calcanhoto não deixa de ser bom exemplo dessa estratégia, que visa associar ideia de livro e ideia de produto.

Não acredito que se possa contestar, como formulação de princípio, o trabalho de dar publicidade a um bom livro. Há um risco real, entretanto, em transformar em critério editorial traços característicos da lógica do marketing, ou seja, daquilo que procura adequar-se à previsibilidade do gosto do público (dito “médio”) ou, pior, de um desejo de compra (esfera da sedução de produto). 

Não há receita para saber o que é boa literatura. Nem as políticas editoriais são tão lineares. Mas há um problema quando o projeto de livro limita-se à opção entre gerar o produto novo e reciclar o produto fora de catálogo. Outras variantes precisariam ser consideradas, como os debates em curso sobre problemas contemporâneos, as questões de crítica e história literária, a natureza das discussões sobre a poesia, a situação editorial dos principais livros da poesia brasileira, a relação da edição com o ensino, a presença da poesia internacional na produção literária, o tipo de leitor que queremos constituir. 

A impressão é que a dimensão pública da poesia é minimizada pelos editores. Basta ler as orelhas, as entrevistas, considerar determinadas intervenções na mídia para se perceber uma espécie de afetação pessimista a esse respeito. Quando se transforma em descaso intelectual, apartado do ambiente no qual as obras circulam, acaba por justificar o que se assemelha a um niilismo mercadológico, que exaure determinados espaços para poder reocupá-los, legitimando seus objetos pela mera exposição no espaço público.

Mimetizada pelos próprios autores, em outras circunstâncias, a postura causa consternação. Mas naturalizada como modus operandi da literatura, suas consequências podem ser ainda mais desastrosas. Valeria a pena avaliar se isso nos basta como vida literária. 


[Texto originalmente publicado no jornal O Estado de São Paulo, com o título “Descontruindo o mito de que poesia não vende”, no dia 5/3/2017. A versão do jornal é diferente em alguns pontos, a começar pelo título, e não incluía os dois últimos parágrafos, tal como aqui reproduzidos.]

quarta-feira, 4 de janeiro de 2017




ENTREVISTA COM MARCOS SISCAR POR IGOR GOMES


I.G. – Os poetas que compõem “26 poetas hoje” são (eram), em sua maioria, vinculados ao que se conhece por “poesia marginal”. Entendo que, de alguma forma, existe uma utopia nesse movimento: a busca por uma estética e “marketing” fora do âmbito das grandes editoras, das grandes influências – buscava uma identidade mais próxima da fala cotidiana e do leitor. Na sua opinião, qual a influência dessa antologia para o entendimento da “poesia marginal”?

M.S. – Historicamente, a antologia à qual você se refere é justamente aquela que ajuda a estabelecer a ideia de geração, ou de grupo. Se há um “marketing” da poesia marginal, ele vem inicialmente da disposição de uma antologista em reunir esses poetas e tratá-los como conjunto coerente. A ideia de conjunto pode ser objeto de discussão, mas o efeito histórico da antologia é inegável.

De resto, o prefácio da antologia refere-se justamente ao perigo do marketing que, à época, respondia pelo nome de “moda”. Eu diria que a atitude dessa geração é a de se afastar do marketing institucional, o que não quer dizer que não se buscasse a circulação dos trabalhos. Tratava-se de imaginar uma circulação mais orgânica, que chegasse às pessoas diretamente, que estabelecesse uma relação direta com o público, que fosse de certo modo formadora de público, sem a necessidade de obedecer aos formatos e aos espaços prescritos para a literatura da época. Há algo de ingênuo aí, mas a disposição crítica é muito apreciável, tendo em vista o “bloqueio sistemático das editoras” ao qual se refere o prefácio. A ideia de que circulação e marketing coincidem é uma triste característica da nossa época.


I.G. – Grandes poetas, como Drummond ou João Cabral, nos levam a uma “angústia de influência”, para usar um termo de H. Bloom. Se tornam problemas para seus sucessores não tanto pela estatura, mas pelas “bifurcações poéticas” que impõem a seus herdeiros, como você diz em “De volta ao fim”. A poesia expressa em “26 poetas hoje” não ocupa o mesmo lugar de Cabral ou Drummond ou Bandeira, o de clássico inquestionável. Mas ela lançou problemas às gerações seguintes?

M.S. – Sim, acho que são situações bem diferentes. Na antologia da década de 1970, há autores que se tornaram importantes e influentes, mas que ainda não ocupam lugar comparável ao de Drummond e Cabral no imaginário poético brasileiro. Aliás, é preciso lembrar que o próprio valor literário dessa geração foi objeto de discussões bastante polêmicas. Basta ver, entre outras, a diferença de avaliação que fizeram dela críticos como Heloísa Buarque de Hollanda e Iumna Simon.

Por outro lado, a circulação que poetas como Ana Cristina Cesar, Roberto Piva ou Francisco Alvim têm hoje dia não se vincula necessariamente, ou preferencialmente, à ideia de geração. São obras muito diferentes umas das outras e que perdem muito com essa circunscrição.

Voltar a falar de “poesia marginal”, hoje, talvez fizesse sentido se pudéssemos, ao historicizar a “utopia”, entender de modo mais exigente o nosso próprio tempo. Muitos daqueles poetas tinham uma relação muito crítica com o seu presente. Poderíamos, então, nos perguntar que tipo de relação os poetas têm hoje com as instituições, com as mídias, com o “marketing”? Que tipo de relação com o leitor a poesia de hoje vem buscando? A quem procura se destinar a poesia contemporânea?


I.G. – Dado o atual contexto político, me parece que 26 poetas hoje continua atual por trazer elementos políticos fortes (por exemplo, a poesia de Roberto Piva ou Chacal). Na sua opinião, qual o papel político (se é que existe, para você) de uma antologia poética? Ele muda, na sua concepção, ao longo do tempo?

M.S. – Uma antologia é “política”, especificamente, no sentido de que faz “política literária”. É um recorte, que procura dar sentido ao contemporâneo. Por isso também é uma forma de crítica.

Claro, ela pode ser “política” em outro sentido, ao reunir autores que se notabilizam pela resistência a determinados padrões culturais e mercadológicos, autores por assim dizer “marginais”. Mas a própria ideia nomeada pela palavra “marginal” pode ter sentidos muito diferentes e mesmo contrastantes em épocas diferentes, como vem acontecendo entre nós. 


I.G. – Em seu livro “De volta ao fim”, você lembra que hoje o entendimento da poesia contemporânea brasileira passa pela ideia de pluralidade. Você cita a segunda antologia (a dos anos 1990) organizada por Heloísa Buarque como um dos reforços a essa ideia – que veio a lume nos anos 1980 em ensaio de Haroldo de Campos. “26 poetas hoje” é anterior a essas ideias (é de 1976). Mas é possível encaixá-la dentro desse olhar “plural”? Se sim, como?: é uma relação presente/passado ou essa poesia continua fortemente presente?

M.S. – Há quem discorde disso, mas acho que a antologia 26 poetas hoje corresponde a outra “época” do discurso sobre poesia no Brasil. Até por isso, o que ela tem de historicamente mais relevante é a ideia de grupo, de geração. Aquilo que tenho chamado de “paradigma da pluralidade” define-se justamente como dissolução desse caráter ou desse desejo de coletividade na criação. Isso se vê claramente na pulverização da proposta de grupo, gerando não apenas a ideia do projeto criativo individual, mas a multiplicação abundante e difusa daquilo que hoje chamamos (em sentido completamente distinto) de “coletivo”, usando a palavra como substantivo e não como adjetivo. Há um constrangimento muito forte, hoje em dia, em se estabelecer posições singulares, mas de grande abrangência, que possam dizer respeito a todos, ou a qualquer um. Como se isso fosse antidemocrático, de alguma forma. A questão é complexa, mas há um equívoco aí que me parece muito lamentável.


I.G. – A celeuma acadêmica que “26 poetas hoje” causou na época de seu lançamento hoje se converteu em uma aceitação pacífica: o livro já foi, inclusive, indicado como leitura para vestibular (UFMG, 2008, por exemplo). É possível dizer que o livro é um clássico? (“clássico” não no sentido de uma obra estanque que jamais comporte novos olhares, mas sim de obra referencial que ocupa um lugar dificilmente questionado).

M.S. – Sim, é uma obra de referência. As questões que levanta e às quais se associa, entretanto, não estão fechadas. Não acho que são “pacíficas”. O passado sempre pode ser relido. O que chamamos “contemporâneo” vive, em boa medida, da discussão sobre seu passado imediato.


 I.G. – A Companhia das Letras anunciou, recentemente, a publicação de uma antologia de poesia “nos moldes de 26 poetas hoje”, que será organizada por Adriana Calcanhotto. O que acha dessa iniciativa e de colocarem a artista para organizá-la? A curta nota de O Globo deixa a entender que o critério será cronológico (poetas nascidos entre 1973 e 1990) – o que não impede que outras ideias guiem o trabalho de Calcanhotto. (A notícia de O Globo é essa: http://blogs.oglobo.globo.com/lauro-jardim/post/os-poetas-da-calcanhotto.html).

M.S. – É difícil comentar alguma coisa que ainda não existe. Mas acho que dá pra dizer que as duas antologias não têm muito a ver uma com a outra. A relação que consigo enxergar é que 26 poetas hoje se tornou conhecida depois de publicada e discutida, por ter inventado um conceito histórico; já a fama da antologia da Co. das Letras precede a própria antologia, o que evidencia que não estamos diante de um trabalho intelectual, simplesmente, mas também de um produto de mercado. Nem é necessário dizer que a comparação é excessiva, porque o paralelo entre uma antologia e outra evidentemente já faz parte de uma estratégia publicitária. 

Há muitas antologias de poesia contemporânea brasileira sendo publicadas no Brasil e no exterior, em livros, em revistas. É fácil notar como cada uma tem um recorte, uma ideia do que é a poesia, do que deveria ser a poesia, do que deveríamos olhar quando lemos poesia. Recortes podem ser apreciados, mas também precisam ser analisados. 

De todo modo, é sempre bom ver uma antologia de poesia no Brasil sendo publicada por uma grande editora. Grandes editoras costumam ser arredias à publicação de poesia. Mas parece que, depois da publicação das obras de Paulo Leminski e Ana Cristina Cesar, será preciso um pouco mais de cinismo para repetir o refrão de que “poesia não vende”.


(Entrevista feita por Igor Gomes para reportagem publicada no Suplemento Pernambuco, em janeiro de 2017. Disponível em: http://www.suplementopernambuco.com.br/artigos/1762-26-poetas-hoje-e-o-papel-das-antologias.html).